Resenha: Literacy and Education de James Paul Gee
Introdução
Publicado como parte da prestigiada série Key Ideas in Education da Routledge, Literacy and Education de James Paul Gee é uma obra concisa, porém densa, que narra uma das mais significativas transformações conceituais no campo da educação nas últimas décadas: a jornada do letramento para fora da mente individual e sua consolidação como um fenômeno sociocultural. Gee, um dos mais influentes acadêmicos nos estudos da linguagem e do letramento, sintetiza mais de trinta anos de pesquisa para argumentar que entender o letramento não é apenas uma questão de decodificação de palavras, mas de compreender como as pessoas usam a linguagem para construir identidades, participar de comunidades e navegar em estruturas de poder. O livro traça essa evolução teórica em quatro capítulos coesos, partindo de uma crítica à visão escolar tradicional, passando pela formulação de uma teoria social da mente e culminando em uma análise das novas práticas de letramento na era digital. Esta resenha não apenas resume os argumentos centrais da obra, mas também aponta para sua aplicação e expansão em pesquisas contemporâneas no contexto brasileiro, demonstrando a vitalidade de seu arcabouço teórico.
A Desconstrução do Letramento como Habilidade Mental
O ponto de partida de Gee é uma poderosa anedota pessoal que se desdobra no argumento central do Capítulo 1 (Introdução). Ao analisar interações de "hora da rodinha" (sharing time) em salas de aula, Gee expõe o fenômeno do não-reconhecimento (misrecognition). Ele detalha como crianças afro-americanas, ao utilizarem um estilo narrativo "tópico-associativo" — uma prática linguisticamente rica e culturalmente significativa, enraizada na tradição da literatura oral —, eram frequentemente vistas por seus professores como incoerentes ou deficientes. Em contraste, crianças que utilizavam um estilo "tópico-centrado", mais alinhado com a estrutura da escrita expositiva valorizada pela escola, eram compreendidas e validadas. Este choque cultural inicial serve como a pedra fundamental para o argumento do livro: o letramento escolar não é uma habilidade neutra, mas uma prática social específica que privilegia certas formas de usar a linguagem em detrimento de outras.
O Capítulo 2 (Letramento) aprofunda essa crítica, historicizando o debate. Gee desconstrói o que Brian Street chamou de "modelo autônomo" do letramento — a crença de que a aquisição da leitura e da escrita, por si só, causa consequências cognitivas universais (como o pensamento lógico e abstrato). A evidência crucial para essa desconstrução vem do estudo seminal de Sylvia Scribner e Michael Cole com o povo Vai, na África, que demonstrou que os supostos efeitos cognitivos do letramento estavam, na verdade, ligados às práticas específicas da escolarização formal de tipo ocidental, e não ao ato de ler e escrever em si. Em oposição, Gee defende o "modelo ideológico", que entende o letramento como um conjunto de práticas sociais indissociáveis de relações de poder, valores e ideologias. O capítulo reconhece a dualidade do letramento, que pode servir tanto como ferramenta de controle social, conforme analisado por Harvey Graff, quanto como instrumento de libertação, como proposto por Paulo Freire. Essa discussão culmina na apresentação dos Novos Estudos do Letramento (New Literacy Studies), campo do qual Gee é um dos fundadores, que solidifica a visão do letramento no plural — como múltiplas práticas de letramento (literacies).
Rumo a uma Teoria Social da Mente e da Aprendizagem
Se o letramento é social, como isso se concilia com o fato de que a aprendizagem ocorre dentro da mente de um indivíduo? O Capítulo 3 (A Mente Social) é a resposta de Gee a essa pergunta, construindo uma ponte elegante entre a teoria sociocultural e a psicologia cognitiva. Ele introduz o conceito de mente corporificada (embodied mind), que não funciona como um processador de símbolos abstratos, mas como um dispositivo de simulação que aprende através de experiências concretas no mundo. Para Gee, o significado das palavras não reside em definições de dicionário, mas nas experiências que evocam em nossa mente.
Isso leva a um paradoxo: a experiência dá significado à linguagem, mas a linguagem organiza e estrutura nossa experiência. A solução para esse ciclo é a interação social. É através da mentoria de outros (pais, professores, pares) que aprendemos a conectar a linguagem à experiência de maneiras socialmente aceitas. É aqui que Gee introduz seu conceito mais célebre: os Discursos com "D" maiúsculo. Um Discurso é um "kit de identidade" que integra formas de falar, agir, valorar, pensar e usar ferramentas para ser reconhecido como um certo "tipo de pessoa" (um biólogo, um fã de games, um "bom aluno"). O Discurso Primário, adquirido na família, frequentemente entra em choque com os Discursos Secundários da escola e de outras instituições. O sucesso educacional, portanto, depende da capacidade do aluno de adquirir um novo Discurso secundário, algo que vai muito além de aprender a ler palavras em uma página.
Letramento na Era Digital: Desafios e Oportunidades
O Capítulo 4 (Mídias Digitais) aplica essa robusta estrutura teórica aos desafios e oportunidades do século XXI. Gee adverte contra o otimismo tecnológico ingênuo, argumentando que as ferramentas digitais, assim como os livros, frequentemente amplificam as desigualdades existentes através do "Efeito Mateus": quem já possui capital cultural e social (os "ricos") se beneficia mais das novas tecnologias do que aqueles que não o possuem. O fator determinante não é a tecnologia em si, mas as práticas de interação e mentoria que a cercam.
Contudo, o mundo digital também oferece modelos poderosos para repensar a aprendizagem. Gee analisa as comunidades online de fãs, como as de escritores de fan fiction do jogo The Sims, como exemplos de "Espaços de Afinidade" (Affinity Spaces). Esses espaços, organizados em torno de interesses comuns, são ambientes de aprendizagem altamente eficazes, onde o conhecimento é distribuído, a participação é flexível e o status é conquistado através da contribuição.
Finalmente, Gee argumenta que os bons videogames comerciais são, em si, sistemas de aprendizagem primorosamente projetados. Eles incorporam princípios como "performance antes da competência" (aprender fazendo), baixo custo do fracasso e problemas bem sequenciados. A lição para os educadores não é simplesmente usar jogos em sala de aula, mas adotar a mentalidade de um designer de jogos, transformando o ensino em um ato de projetar experiências de aprendizagem significativas e envolventes — o que ele chama de Ensino como Design (Teaching as Designing).
Aplicação e Expansão: A Teoria de Gee em um Contexto Decolonial
A relevância e a plasticidade do arcabouço teórico de Gee são postas à prova e confirmadas em aplicações práticas como a apresentada no livro Ambientes Ciber-Sociais e Letramentos. Em seu capítulo "Mente Social e Decolonização", o autor demonstra como os conceitos de Gee podem ser mobilizados para fundamentar uma pedagogia decolonial no contexto brasileiro. A análise de um projeto de escrita na plataforma digital CGScholar ilustra vividamente a teoria em ação.
No estudo de caso, uma estudante, Anna, utiliza seu Discurso primário — enraizado na cultura periférica, no rap e em suas experiências como mulher negra — para construir um ensaio acadêmico. Ao fazê-lo, ela não abandona sua identidade, mas a utiliza como matéria-prima para ressignificar um Discurso secundário (a escrita acadêmica), criando o que o autor chama de um "discurso acadêmico não colonial". Este processo é um exemplo perfeito da "mente social" de Gee em funcionamento: a aprendizagem ocorre através da experiência vivida e da interação, onde a aluna edita sua memória e a formata em uma nova representação que desafia as hierarquias de conhecimento.
Aqui, a teoria de Gee é expandida ao ser colocada em diálogo direto com pensadores decoloniais como Walter Mignolo. O ato de Anna inscrever sua memória e seu Discurso primário no ambiente acadêmico é interpretado como um ato de "justiça cognitiva" e "decolonização epistêmica". A plataforma digital atua como um facilitador crucial, permitindo que a performance (escrever) venha antes da competência formal e que a colaboração entre pares (revisão) amplie a compreensão e valide as múltiplas formas de saber. O capítulo demonstra que a teoria de Gee não apenas oferece um diagnóstico para o "não-reconhecimento" que ocorre nas escolas, mas também fornece as ferramentas conceituais para projetar intervenções pedagógicas que promovam a inclusão e a valorização de Discursos historicamente marginalizados.
Conclusão
Literacy and Education é uma síntese magistral que consolida a visão sociocultural do letramento como uma prática social, política e identitária. A grande força do livro reside na clareza com que Gee tece uma narrativa coesa a partir de décadas de pesquisa interdisciplinar, tornando conceitos complexos acessíveis através de estudos de caso vívidos e uma prosa envolvente. Como demonstrado por aplicações contemporâneas no contexto brasileiro, seu arcabouço teórico permanece extraordinariamente fértil.
Ao definir o letramento como a maestria de Discursos sociais, Gee oferece aos educadores um diagnóstico poderoso para as falhas do sistema escolar e um caminho construtivo para a mudança. A obra não é um manual de "como fazer", mas um profundo convite à reflexão teórica. Sua mensagem final é um desafio para que se abandone a busca por "balas de prata" tecnológicas ou pedagógicas e, em vez disso, se concentre em projetar ecologias de aprendizagem que forneçam aos alunos experiências ricas e mentorias adequadas para que possam, de fato, adquirir e transformar os Discursos que lhes darão poder na sociedade. É uma leitura essencial para qualquer pessoa no campo da educação que busca compreender as raízes das desigualdades de aprendizagem e imaginar formas mais justas e eficazes de ensinar e aprender no século XXI.
GEE, James Paul. Literacy and Education. New York: Routledge, 2015.