Resenha: Cyberlibertarianism: A Política de Direita da Tecnologia Digital
Introdução
Publicado postumamente, Cyberlibertarianism: The Right-Wing Politics of Digital Technology (2024) é um livro contundente do acadêmico e crítico cultural David Golumbia (1963–2023). O livro chega como a culminação de uma carreira dedicada a desmistificar a aparente neutralidade da tecnologia digital, seguindo seus trabalhos anteriores, The Cultural Logic of Computation (2009) e The Politics of Bitcoin (2016). A obra é um testamento poderoso e, por vezes, sombrio, editado e prefaciado por amigos e colegas que garantiram que a voz crítica de Golumbia não fosse silenciada por seu falecimento prematuro. O argumento central do livro é provocador e urgente: sob a retórica de liberdade, descentralização e inovação, uma ideologia política específica — o cyberlibertarianismo — tem moldado a tecnologia digital para servir a uma agenda fundamentalmente de direita, antidemocrática e corporativista.
Golumbia define o cyberlibertarianismo, termo cunhado por Langdon Winner, como uma fusão sincrética da contracultura dos anos 1960 com o libertarianismo de direita. Essa ideologia utiliza uma linguagem de empoderamento e progresso para, paradoxalmente, promover a desregulamentação, minar a soberania democrática e concentrar poder nas mãos de uma elite tecnológica. O livro funciona como um vasto e bem documentado processo de desmascaramento, conectando os pontos entre a cultura do Vale do Silício, as políticas de governança da internet e a ascensão da extrema direita global.
A Anatomia de uma Ideologia Digital
O livro de Golumbia é estruturado em três partes que dissecam metodicamente o cyberlibertarianismo. A primeira parte define a ideologia, traçando suas origens históricas e manifestações práticas. Golumbia argumenta que o movimento opera através de um "sofisma" (sleight of hand): enquanto o debate público se concentra em questões aparentemente técnicas como neutralidade da rede, direitos autorais ou "liberdade da internet", a conversa subjacente é sobre a própria legitimidade da governança democrática. Conceitos como "aberto", "livre" e "descentralizado" são mobilizados como ferramentas retóricas ambíguas que, sob a aparência de universalismo, servem a interesses particulares.
Na prática, essa ideologia se manifesta em políticas concretas. O autor dedica um capítulo inteiro à análise da Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações dos EUA, demonstrando como essa legislação, interpretada de forma expansiva, conferiu uma imunidade quase absoluta às plataformas, criando um regime de "poder sem responsabilidade". Da mesma forma, o modelo de governança "multistakeholder" (múltiplas partes interessadas) é criticado como um mecanismo que dilui a soberania democrática, colocando corporações e ONGs em pé de igualdade com governos eleitos, o que na prática favorece os atores com mais recursos.
Desconstruindo os Mitos Fundacionais
A segunda parte do livro se dedica a demolir os mitos que sustentam a narrativa cyberlibertária. O capítulo sobre a metáfora da prensa de Gutenberg é particularmente notável. Golumbia argumenta que a comparação da revolução digital com a revolução da imprensa é uma simplificação histórica grosseira, usada para apresentar a tecnologia como uma força inerentemente democratizante e para caracterizar qualquer tentativa de regulação como uma forma de censura reacionária. Ele contrapõe essa visão com uma análise histórica que mostra o papel ambivalente da imprensa, utilizada tanto para a emancipação quanto para a propaganda e o controle.
Outros mitos, como o da "cultura livre" e da privacidade absoluta, são igualmente desconstruídos. Golumbia demonstra como o discurso anticopyright, embora pareça progressista, frequentemente desvaloriza o trabalho criativo e fortalece as plataformas que lucram com a distribuição de conteúdo. A demanda por privacidade e criptografia irrestritas, por sua vez, é analisada como uma rejeição da legitimidade de qualquer supervisão estatal, mesmo aquela democraticamente sancionada, enquanto convenientemente ignora a vigilância corporativa, muito mais pervasiva.
A Conexão Fascista
A parte mais contundente e controversa da obra é a terceira, que traça as conexões diretas entre o cyberlibertarianismo e a extrema direita, culminando no conceito de "cyberfascismo". Golumbia argumenta que a ideologia cyberlibertária funciona como uma "pipeline" para a radicalização. Indivíduos atraídos por preocupações legítimas com privacidade ou liberdade de expressão são gradualmente expostos a uma visão de mundo que despreza a democracia, celebra a desigualdade como meritocracia e vê o Estado como o único inimigo.
O autor não hesita em apontar as raízes filosóficas compartilhadas entre o libertarianismo radical de figuras como Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe e o fascismo clássico, incluindo o elitismo, o desprezo pela democracia de massas e a defesa de uma ordem social autoritária para proteger a propriedade privada. No contexto digital, esse fascismo se torna descentralizado, operando através de comunidades anônimas (como 4chan) e substituindo critérios de exclusão raciais por critérios técnicos e "produtivistas". Figuras como Julian Assange, movimentos como o dos cypherpunks e ideologias como o Aceleracionismo de Nick Land são apresentados como exemplos dessa perigosa fusão entre ativismo tecnológico e extremismo de direita.
Avaliação Crítica
Cyberlibertarianism é uma obra de síntese formidável. O livro documenta o que tem se passado na internet na última década e a categoria de análise ciberlibertarianismo funciona para desmistificar e captar os reais interesses de grupos de extrema direita e donos de plataformas. Sua força reside na capacidade de conectar uma vasta gama de fenômenos — da cultura hacker à política de criptomoedas, da teoria da Public Choice à governança da ICANN — em uma única e coerente tese.
No entanto, a força polêmica do livro é também sua principal vulnerabilidade. Por exemplo, as posições do autor são um tanto rígidas e ele acaba caindo em seus próprios "determinismos". A afirmação de que as criptomoedas são inerentemente de extrema-direita, por exemplo, embora baseada em uma análise robusta de suas origens e de sua comunidade mais vocal, arrisca apagar os usos e as apropriações heterodoxas que também existem. Além disso, muitas tecnologias citadas pelo autor já passaram do “ponto de não-retorno", e o desafio talvez resida menos em rejeitá-las em bloco e mais em disputar seus significados.
A análise de Golumbia se aplica primariamente ao ecossistema ocidental de big techs, falhando em incorporar o caso da China, que sequer é mencionado. A ausência de uma análise comparativa com o modelo chinês — onde um ecossistema tecnológico altamente inovador coexiste com uma forte regulação e planejamento estatal — é uma oportunidade perdida. Tal comparação poderia ter fortalecido o argumento de que o modelo de desregulamentação defendido pelas big techs norte-americanas é uma escolha ideológica, e não uma necessidade técnica para a inovação.
Adicionalmente, Golumbia tende a apresentar o cyberlibertarianismo como puramente anti-Estado, mas a realidade é mais complexa: o capitalismo de plataforma tem sido extremamente bem-sucedido em capturar o Estado e usá-lo para defender seus interesses, inclusive em governos democraticamente eleitos. A ideologia não é apenas de fuga, mas também de captura.
Conclusão
David Golumbia não viveu para ver seu livro publicado, um fato que confere à sua leitura uma camada adicional de urgência e melancolia. Cyberlibertarianism é uma intervenção corajosa, erudita e profundamente pessimista, embora, como aponta George Justice no prefácio, animada por uma "crença essencialmente esperançosa nos poderes da mente humana para contemplar, entender e tentar mudar o mundo para melhor".
Embora se possa discordar de seu "radicalismo" ou apontar suas simplificações, é inegável que Golumbia oferece um arcabouço teórico indispensável para compreender a política de nosso tempo. Ele nos força a ver que debates sobre tecnologia nunca são apenas sobre tecnologia; são debates sobre poder, governança e sobre o tipo de sociedade em que queremos viver. Ao desmascarar a política de direita que se esconde por trás da fachada de neutralidade e liberdade da tecnologia digital, Cyberlibertarianism nos presta um serviço intelectual e cívico inestimável. É uma leitura assustadora, mas absolutamente essencial.
GOLUMBIA, David. Cyberlibertarianism: The right-wing politics of digital technology. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2024.
Observação: Usei o Manus IA para me ajudar a elaborar minha anotações de leitura na escrita deste texto.